No princípio, não havia nada. E Deus criou os Céus e a Terra. Ninguém percebeu nada, pois tudo ainda estava escuro. Na verdade, Deus estava com vontade de criar tudo naquela hora mesmo – o homem, os animais, os mares – e deixar a luz por último. Assim, ele organizaria um evento para acender a luz, reunindo celebridades e membros da imprensa. E quando o universo se acendesse, tudo já estaria criado, e o impacto seria maior ainda. “O departamento de marketing vai adorar”, pensou o Criador.
Mas foi obrigado a mudar de idéia, porque era difícil trabalhar naquela escuridão toda. Não conseguia achar nada sobre Sua mesa. Canetas, esboços de animais, tudo havia desaparecido. Mas o pior de tudo foi quando Se levantou e caminhou pelo escritório para pegar o balde que continha o barro destinado à criação do homem e acabou dando uma topada com o mindinho na quina da mesa. Depois de gritar de dor (e se esforçar bastante para perdoar a mesa), sentou-se resignado e falou “Faça-se a luz”.
Assim, a Terra se iluminou e Deus colocou as mãos na massa. Povoou o planeta com animais e criou o homem, à sua imagem e semelhança, para governar a Terra. Parou para descansar alguns minutos, pensando no que pediria de almoço.
Foi nessa hora que um dos gerentes entrou na sua sala, esbaforido.
– Senhor, um pedaço da Terra está apagado.
– Como assim?
– É lá na América do Sul. Está tudo escuro.
Deus abriu seu mapa e checou. Realmente, um grande pedaço de terra estava às escuras.
– Peça a algum santo para ligar para a Companhia de Luz e ver o que está acontecendo.
– Não tem santo nenhum aqui, Senhor. Estão todos na rua. Apenas São Tomé está na empresa, mas ele fica apenas repetindo que não acredita que está faltando luz. Se o Senhor quiser, eu posso ligar.
– Deixe, eu mesmo resolvo.
Pegou o telefone e discou. Foi atendido por uma gravação.
Obrigado por ligar para a Companhia de Luz. No momento, todos nossos atendentes estão ocupados. O tempo de espera é de três minutos.
“Bom, eu não criei o mundo em um dia”, suspirou Deus, acomodando-se na cadeira e preparando-se para esperar. Cinco minutos depois, foi atendido.
– Companhia de luz, Rogério, bom dia. Em que posso ajudá-lo?
– Está faltando luz em um pedaço do Meu planeta.
– O senhor pode confirmar seu CPF?
– Um.
– Senhor, eu preciso do CPF inteiro.
– Este é meu CPF. Um.
– Qual o nome do assinante do planeta?
– Deus.
– Não consta no cadastro, senhor.
– Como assim?
– Não temos nenhum assinante com o nome Deus.
Deus suspirou.
– Tente Jeová.
– Encontrei, senhor. Qual o problema?
– Eu já disse. Está faltando luz em um pedaço do Meu planeta.
– Só um minuto, senhor. Vou checar aqui.
– Não é senhor. É Senhor, com maiúscula, respondeu Deus, que levava isso muito a sério. Mas o atendente não ouviu, pois já havia colocado a ligação em modo de espera. Minutos depois, ele voltou.
– Obrigado por aguardar. Senhor, realmente, um pedaço da América do Sul está com problemas.
– Eu sei disso. Fui por isso que liguei.
– O senhor efetuou o pagamento das últimas três contas?
– Ainda não há contas. Eu criei tudo agora de manhã.
– Entendo. Só um minuto.
E colocou a ligação na espera novamente. Deus suspirou. Minutos depois, voltou.
– Senhor, estava checando no sistema e será preciso agendar a visita de um técnico, para estarmos identificando a causa do problema.
– Não, tem que haver outro jeito de resolver.
– A visita do técnico é necessária para entendermos o problema.
– Eu criei tudo agora de manhã, e estava aceso. Coisa de meia hora atrás. Não é possível que vocês já conseguiram quebrar.
– Senhor, realmente não posso estar precisando mais nada sem o parecer do técnico.
– Vocês não mexeram em algo errado?
– Só um minuto.
A ligação foi para o modo de espera de novo. Deus começou a tamborilar os dedos na mesa, impaciente. Estava quase desligando e descendo até a Terra por conta própria para ver o que havia acontecido, quando o atendente voltou.
– Obrigado por aguardar.
– Ok.
– O senhor pode confirmar seu CPF?
– De novo?
– Sim, por favor.
– Um.
– Só um minuto, vou estar entrando no seu cadastro.
– Tudo bem.
Ficou ouvindo o atendente digitando rapidamente. Fez uma anotação mental de que poderia usar o gerúndio como um dos idiomas na Torre de Babel, futuramente. Deus era assim, estava sempre criando. Mas foi interrompido pelo técnico.
– Senhor, aqui no seu cadastro diz que está tudo em ordem. O senhor confirma que a região está sem luz?
– É evidente que confirmo. Estou olhando agora, está tudo escuro.
– Senhor, realmente vamos ter que estar agendando a visita do técnico.
Deus suspirou mais uma vez.
– Quanto tempo isso demora?, perguntou o Criador.
– De dois a três dias úteis.
– Dois a três dias? Eu não posso deixar metade de um continente sem luz durante esse tempo.
– Sinto muito, senhor, mas é o primeiro horário vago que temos.
– Ok, ok.
– Posso confirmar então a visita para este período?
– Sim.
O atendente digitou mais um pouco.
– A visita está agendada. O senhor quer anotar o número do protocolo?
– Não precisa, respondeu Deus, que acreditava na bondade humana acima de tudo.
– O senhor ou outra pessoa estarão lá para atender os técnicos?
– Eu estarei lá, a hora que eles chegarem. Sou onipresente.
– Como assim, senhor?
– Nada, nada, eu estarei lá.
– Algo mais em que posso ajudá-lo?
– Não.
– A Companhia de luz agradece e deseja um bom dia.
E desligou.
Passaram-se três dias, e nada dos técnicos. Deus ligou de novo, brigando, mas era preciso o número do protocolo. Ameaçou mandar anjos com espadas de fogo, ameaçou transformar o atendente numa estátua de sal, mas não adiantou nada. Sem o número do protocolo, não havia o que fazer.
Finalmente, eras depois, os técnicos apareceram. O mundo já estava quase todo povoado, mas aquele pedaço da Terra continuava escuro. “Imagine o que não estão pecando lá naquela parte escura”. E os técnicos olharam tudo, sob o olhar atento de Deus. Inspecionaram tudo, mexeram na fiação, fizeram testes.
– O problema não é aqui. Deve ser lá na central disse um dos técnicos, que usava o tradicional macacão da Companhia de Luz, mas com uma camisa do Botafogo por baixo da roupa.
– Como assim?
– Não tem o que fazer, tem algo errado na central.
– E o que Eu faço?
– O senhor terá que ligar de novo para lá.
Pela primeira vez na história, Deus perdeu o controle. Aos gritos de "até a Minha paciência tem limites", mandou os anjos tirarem os técnicos dali e subiu de volta para o seu escritório.
Entrou bufando na Sua sala e mandou Sua secretária convocar uma reunião com todos os santos na parte da tarde. Havia tomado uma decisão drástica.
E, antes de desligar o telefone, ainda fez dois últimos pedidos a ela:
– Antes da reunião, faça um levantamento de quantas espécies animais temos naquele planeta. E mais uma coisa: ligue para o Noé, preciso falar com ele. É urgente!
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